28/09/2010

Petit, Grand Marcel

Maira Renou

Senti um arrepio pelo corpo ao chegar naquele terraço que há anos conhecia, mas que habitualmente me era motivo de alegria brincar com meus amigos... Mas agora tenho medo. Não é certo eu estar aqui. As coisas, definitivamente, estão erradas.
Para começo de historia já nem me lembro a primeira vez que entrei nesta igreja. Eu era tão pequeno. Mamãe me trazia com meus dois irmãos mais velhos, Jacques e Paul. Jacques era uma peste e ainda apronta as suas. Paul, o garoto exemplar. Eu corria atrás do primeiro, entre os bancos da velha igreja. Ela ficava no final da Rue de L`harpe.
Nossa mãe rezava, e nós também. Pedíamos para que o papai fosse libertado. Queria tanto conhecê-lo e não compreendia por que teve que partir, deixar a família, eu na barriga de mamãe! Ela nos dizia que ele foi para ajudar o país, cumprir seu dever de cidadão francês. E eu só pensava que os alemães eram todos realmente cruéis. Não era justo aprisionar meu pai por cinco anos...
Morávamos numa pequena casa, na mesma rua da igreja. Era fria, e, às vezes não tínhamos madeira para a lareira. O mais triste disso é que eu achava que mamãe não gostava de nós... vivia chorando, esquecia vez ou outra da comida. Como as crianças são egoístas.
Íamos à missa todo domingo, ela realmente acreditava em Deus. Eu, particularmente, nem tanto. As coisas não faziam muito sentido. Por que permitir tanto sofrimento e maldade? Ela deve ter percebido minha incredulidade. O esforço que fazia para que eu temesse a Deus era claro. Talvez por isso, a escola católica. Mas também não havia muitas opções. Até a nossa pequena cidade, Angers, sofreu bastante com os bombardeios. As escolas que restavam pertenciam à igreja, e a minha, dirigida por frades. Alguns eram bons. Outros nem tanto, e agora estou aqui.
(Barulho de passos. Uma mão sobre o ombro. Estremecimento).
- Que bom que você veio, petit Marcel.
(Silêncio. Vira-se. Encara)
- Frei Pierre disse que o senhor queria falar comigo.
(Aproximação. Toque na mão)
- Sim, estou preocupado. Me parece que suas notas não estão muito boas.
(Desliza. Paralisação)
(No silêncio vazio, ecoou um grito. O padre caía com o nariz ensangüentado)
- Isso vai te custar caro!
(Correu sem olhar para trás)
Eu já sabia da fama desse pervertido! E ainda se diz representante de Deus! Um soco... muito pouco! E não vai adiantar denunciar, sei que não vai. Com certeza vou ser expulso do colégio. E se quiserem me ex-comungar?! Minha mãe, coitada, vai ficar arrasada. 14 anos... e agora?
(Uma placa diz: precisa-se de empregado)
(Bate no grande portão de madeira. Abrem.)
- O trabalho é fácil, vai colar o adesivo nas latas de tinta e contar. Ganha pouco.
- Eu aceito.

Todos os dias a mesma coisa: a massa de homens tristes, muitos retornados da guerra, olhos vazios, espírito sem vida e corpos cansados. Encaminham-se para as fábricas, trabalham procurando algo mais do que trocados para a baguete. Alguma razão.
Aqui na fábrica de tintas são muitos. Sinto que precisam além de direitos de trabalho, condições dignas de vida. Precisam de apoio, alento e luta! Acho que vou me juntar à Juventude Operária Católica. Alguma coisa posso, e preciso fazer para ajudar nas batalhas que são muitas contra a miséria do povo e do coração das pessoas.

(Mobilização. Esperança)
Preciso continuar.

Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, Amém.
- Mon petit Marcel, tenho certeza que você será um padre bom e justo para ajudar essas pessoas.
- Merci, maman.


 
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