29/09/2010

Relações internacionais

Mohara Valle

Desci do trem e as únicas pistas que eu tinha para encontrar K. eram o telegrama que me enviara e o seu perfume. Dois sentidos trabalhando a serviço da minha razão me diziam que K. era do sexo feminino.
K. quis deixar claro que era mulher e não tinha muitos motivos para tentar me enganar. Digo, se entrou em contato comigo, só poderia querer que eu a encontrasse.
Sendo mulher, comecei a chamar K. de “ela”. O perfume doce que eu tinha na lembrança e o telegrama que dizia:
- Liverpool é linda e aconchegante. Tenho algo que você precisa. Traga-me flores.
Agora, um terceiro sentido me movia, na verdade o sexto – intuição. Por quê?
Porque K. não era só uma letra. K. era uma morena de cabelos longos e com pernas de tirar o fôlego. Tá, tudo bem, isso aí a gente encontra em qualquer agência que se preze, se é que me entende.
E foi assim que eu a conheci, procurando aliviar uma tensão. Só que do alívio fomos para a conversa. Eu acabei conhecendo a Keila que amava Beatles, era de Pirapetinga, veio para Campinas estudar Relações Internacionais e precisava pagar os livros de algum jeito, além de curtir ir ao cinema aos fins de semana. Marcamos de ver “Terra em Transe”, mas ela não apareceu. Nunca mais.
Quando seu telegrama chegou, eu estava assim: barba embaraçada com os cabelos do peito, rodeado de poeira, cacarecos e garrafas no chão. Tinha uma faca rente ao pulso e a idéia do alívio que viria a seguir. O resto eu havia perdido.
Então a campainha toca com o telegrama. Keila novamente desviou a minha intenção de alívio, desta vez em um sentido mais eterno.
Uma semana depois, lá estava eu na estação com duas pistas e uma dúvida que evitava trazer à tona, sem sucesso. Sua inicial era mesmo K? Poderia escrever-se Queila, ao contrário. E a droga do telegrama podia ser para o antigo morador do apartamento. Por que eu não pensei nisso tudo antes? Que diabo de idéia de ir para outro continente atrás de uma mulher que eu só tinha visto uma vez, por causa de um telegrama que nem era pra mim.
Eu caminhei pelas ruas atordoado e resolvi ficar em um albergue. Meu dinheiro dava para isso apenas. Senti que estava perdido, o que pelo menos era uma novidade. Há muito tempo eu não tinha mais nada a perder.
Decidi conhecer a cidade. No entanto, em um dia esse plano deu lugar a outro. Eu me lembrei que em nossa única conversa, Keila (com “K” e ponto final) tinha dito que a primeira coisa que faria em Liverpool seria visitar o local onde os Beatles tocavam no início.
Meus dias seguiram em sucessivas vigílias naquele lugar, sempre atento a alguma mulher que pudesse ter um resquício de Keila, embaixo de 16 anos de possíveis rugas e gorduras. Não me importava contanto que fosse ela.
No fim do sexto dia de vigília, uma menina, que então eu lembrei que já havia passado ali, parou e disse:
- Teria sido realmente mais fácil se você estivesse com flores, pai.
Ao que eu, paralisado, não respondi, ela seguiu falando:
- A minha sorte é que minha mãe roubou sua foto da carteira naquela vez e você, no fundo, não mudou quase nada. Vamos sentar em algum lugar?
Eu só fiz escutar e atender. Ela falava, com os mesmos trejeitos da mãe, um português britânico. No café, Karla foi me explicando que me achou porque uma amiga de Queila (sim, com “Q”) era minha vizinha, me viu saindo uma vez e me ouviu cantando “Hard day’s night” bêbado umas cinqüenta. Disse também que optou pelo telegrama misterioso para que eu viesse. Sabendo da minha situação, confiava mais na busca por um motivo para viver do que a idéia de um encontro com uma filha desconhecida. Ela queria me ver, mesmo que depois eu a rejeitasse. Confidenciou que o bolo de Queila foi para preservar o trabalho. Ela não podia se apaixonar. Quando soube da gravidez, resolveu mudar de vida. Trabalhou como recepcionista de uma multinacional em Liverpool até morrer ano passado – “Só porque ganhava em Libras.” – Queila ensinou à filha.
Ouvi tudo com atenção. Ao fim, só pude responder:
- Desculpe, mas tenho que falar que você estava errada. Você tem tudo que eu preciso.
Seu sorriso, tal qual o meu, me dava essa certeza.


 
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